sábado, 18 de dezembro de 2010

A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA

A MATAÇÃO

II - A MORTE DO PORCO

Manhã cedo, os convidados dirigem-se para a casa da matação, onde são recebidos festivamente, com oferta de bebidas e de bolos. Logo tomam o café ou uma refeição ligeira. É o começo da festa, que se prolonga por todo o dia.

Feitos os preparativos, para que nada falte no momento preciso, como a colocação do banco do sacrifício, fora de casa, nas proximidades da porta da loja, o alguidar de barro para aparar o sangue, a colher de pau, para o mexer, um punhado de sal e um pouco de vinagre para que não coalhe, a sangradeira ou faca para picar o coração do animal, a carqueja e a palha para chamuscar ou queimar as cerdas e a parte superficial da pele (actualmente, usa-se mais o maçarico a gás), as navalhas e os pedaços de telhas ou pedras para a limpeza de pele, depois da queima dos pelos, a água para a lavagem, a linha e a agulha para coserem o corte causado pela faca, o cordel para atarem a tripa cagueira e o chambaril, pau curvo de oliveira ou medronheiro, com chanfro nas pontas desbastadas, para dependurar o animal, os homens vão buscar o porco à furda, que esteve umas semanas a ser cevado, comendo, além da vianda normal, algumas rações de milho. No último dia de vida, o porco pouco deve comer, para as tripas estarem limpas, o mais possível. Dão-lhe comida só para entreter.

“Corricho! Corricho!”, chama o dono saltando para a furda, tentando prender o animal, com uma corda, por uma pata ou pelo pescoço.

O porco é chamado por “Corricho”, Quiá” e “Coche”, com muito carinho, pelo reconhecimento da sua importância na economia familiar.

O porco, desconfiado, olha de través e lança grunhidos, como que a adivinhar o que lhe vai suceder. Dizem os casaleiros que os porcos sabem quando vão morrer. Por isso, recusam-se a sair da furda.

Com mais ou menos custo e esforço, o porco é levado para o banco, entre risotas e ditos brejeiros. Atados o focinho e as patas, para evitar mordidelas ou sapatadas incomodativas, o animal, sempre a grunhir, é imobilizado sobre o banco. Os homens distribuem-se em redor do banco, segurando o porco para o sacrifício.

O matador lava o local onde vai enterra a lâmina da faca, por vezes, faz o sinal da cruz, e espeta a faca, entre as pernas dianteiras do animal, abaixo da papada, no direcção do coração. É necessária alguma perícia para que o animal morra rapidamente e não fique a sofrer e a resfolgar, quando a lâmina não vai certeira.

O porco, no altar do sacrifício, agita-se violentamente e solta grunhidos de aflição, sob a força dos homens. O sangue esguicha para o alguidar, onde estão o sal e o vinagre, conforme as contracções do animal, e a mulher vai mexendo sempre para que não coagule.

O porco é sempre sacrificado por um homem e o sangue é sempre recolhido por uma mulher. Estamos, por certo, perante sobrevivências de efectiva divisão sexual do trabalho, com tarefas próprias de cada sexo. Ao homem pertenciam as tarefas mais pesadas e longínquas da casa, como o abate de árvores e a caça de animais de grande porte. À mulher cabiam as tarefas mais leves e próximas da habitação, como apanha e a colheita de frutos, de ervas e a caça de animais pequenos, facto que tem a ver com os cuidados a ter com a criação dos filhos.

As ciências sociais e humanas não descuram este facto da simbologia sexual do trabalho. O homem faz penetrar a faca de matar porcos, símbolo fálico, na direcção do coração do animal, para que o sangue jorre e seja recebido pela mulher, no alguidar, símbolo sexual feminino. Faca como instrumento de trabalho do homem; alguidar como utensílio doméstico da mulher. Definidos sexualmente.

Depois dos derradeiros estertores e cosida a abertura provocada pela faca, o porco é chamuscado com paveias de carqueja ou de palha em chama e logo raspado com pedras e pedaços de telha, para ser retirada a parte superficial da pele, que empolou. As unhas são retiradas, depois de bem aquecidas, e metidas na algibeira de alguém que esteja descuidado, normalmente uma pessoa novata, para risada geral, quando esta der pelo facto. Bem lavado, por vezes com água quente, o porco é submetido à operação de barbear: corte dos pelos e das cerdas, com navalhas afiadas.

Chamuscado, barbeado e lavado, o porco é preparado para ser dependurado, normalmente na loja, no rés-do chão da habitação. É feito um corte a circundar o ânus, a tripa (chamada cagueira) é atada com um cordel e recolhida, por pressão, no interior do animal. Nas patas traseiras, são feitos dois cortes opostos, para descobrir os tendões, onde são enfiadas as pontas chanfradas do chambaril, para suspensão da carcaça do porco. O animal é transportado a braços para a loja e dependurado, com o chambaril atado num caibro, numa sonave ou num gancho fixado no tecto



Os convidados para a matação tomam a primeira refeição.

O dono vai prender o porco por uma perna, para ser levado para o local da morte.

O porco é arrastado para o local da morte; adivinha o sacrifício e oferece resistência.


Com o porco seguro, no banco, o matador arregaça a manga para o trabalho.


O matador aponta a faca no local prório para a lâmina atingir o coração.

O porco sangra e o sangue cai para um alguidar; uma mulher vai mexendo.
O porco sangra, mulher mexe o sangue.

A mulher continua a mexer o sangue.

O sangue corre aos poucos.

O sangue ainda pinga.

As última gotas de sangue caiem no alguidar.



As cerdas e os pelos do porco são queimados com carqueja a arder.


Ultimação da queima geral dos pelos e cerdas.


Enquanto um homem chamusca as unhas para retirar o casco, a quente, outro limpa as orelhas.


Depois de queimadas as cerdas e os pelos, a pele do porco é raspada com pedaços de telhas e pedras, para limpeza.


Limpa a pele do porco, é feita a barba, cortando todos restos de pelos, rente à pele, sendo então, lavado com água.


Lavado o porco, é feito um corte em volta do ânus, para soltar a tripa cagueira (recto) que é atada no extremo, para não se libertarem excrementos, a metida na carcassa pelo orifício feito pelo corte, o que está a ser feito na fotografia.






A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA



A MATAÇÃO

I - CONSIDERAÇÕES GERAIS

Na povoação de Casal da Serra, aldeia anexa à freguesia e Vila de São Vicente da Beira, implantada na vertente sul da Serra da Gardunha, a uma altitude de 700 metros, devido ao seu isolamento físico e social em que esteve mergulhada durante longos anos, ainda mantém algumas tradições em todos os campos da actividade quotidiana, bem como nos rituais festivos, manifestações que são sobrevivências de um passado remoto. Sem estrada e sem energia eléctrica até há pouco mais de duas dezenas de anos, salvo um ou outro caso, para além da emigração para França, nos anos sessenta do século xx, a população manteve-se fechada ao exterior o que condicionou uma forte endogamia de aldeia.

A emigração para França, quase sempre a salto, levou muitos homens para outros destinos, logo seguidos pelas mulheres, facto que deu uma nova dinâmica à aldeia, que se desenvolveu mercê das remessas pecuniárias enviadas, embora entrasse numa fase de desertificação demográfica. Nos dias de Verão e pelo Natal a aldeia passou a ter grande animação. Um forte sentimento de pertença a uma comunidade e um notável e atávico desejo de regresso às origens marcam indelevelmente o espírito dos casaleiros. Muitos dos regressados da emigração voltaram para o quotidiano rural, mas sem a penúria e o esforço de outros tempos. Em conjunto com os que ficaram mantêm, na aldeia, muitas das antigas tradições, embora se aperceba uma grande mudança cultural e das mentalidades, especialmente nos mais jovens. Inclui-se, neste facto, o ritual da matação do porco, como uma festa familiar.
Até ao último quartel do século XX, a população do Casal alimentava-se, praticamente, com os produtos da horta, milho, centeio, batata, couves, que cultivava nas leiras, com o azeite das oliveiras que plantava nos socalcos, quase sempre ao rés dos cômoros, para libertar o solo para as culturas, com algumas castanhas caídas dos castanheiros que restavam, com os animais de criação, o vivo, galinhas, coelhos e porco, e com o gado, a cabra, que dava o leite e o queijo diários. Por vezes, chegavam algumas sardinhas amarelecidas, acamadas em sal, em caixas à cabeça das mulheres ou sobre o dorso de um asno. Sardinha, muitas vezes dividida por dois e por três, com disputas entre os filhos ou sorteios para ver a quem calhava a cabeça do peixe.
As gentes do Casal esmeram-se a tratar o porco, criado na furda, próximo da habitação. A furda, que ainda se encontra espalhada pela povoação, é uma construção própria para o porco, composta por um compartimento coberto por palha, giestas ou telhas, onde o animal dorme, e um recinto a céu aberto, com a pia de pedra, para a comida, e o piso coberto de mato que, curtido pelas chuvas e pelos excrementos do animal, se transforma em estrume. Até aos anos setenta do século XX, normalmente, quando se construía uma casa agregava-se-lhe uma furda. Se o terreno era exíguo, procurava-se a furda num lugar próximo.
O porco é alimentado com os restos da comida e com a lavadura, água da lavagem da louça, à qual se juntam farelo, hortaliças e ervas de flora espontânea, especialmente saramagos, labaças e beldroegas.
O porco era, ainda há pouco tempo, o remedeio das famílias casaleiras durante o ano. Na salgadeira, situada em lugar fresco, normalmente na loja, havia sempre um naco de toucinho ou um osso para temperar o calo. Do fumeiro, do pote de barro ou da talha, tirava-se sempre uma morcela, uma chouriça ou um chouriço, para o conduto normal ou para oferecer a uma visita que chegasse. Na arca ou em sítio seco, para não tomarem bolor, estavam as farinheiras, que serviam de conduto, a seguir ao caldo ou para acompanharem arroz branco, preparado na caçola (caçarola) O presunto, contido num saco de tecido branco, era guardado para os dias de festa ou para as merendas, numa ida a romaria ou a feira.
A matação, os enchidos e as carnes salgadas são objecto de manipulação cuidadosa, tratamento e conservação através de tecnologias tradicionais apropriadas, segredos de famílias e saberes de homens e de mulheres acumulados durante os tempos, passados de geração em geração.
Nos meses de Dezembro a Fevereiro, quase sempre aos fins-de-semana, em que o tempo está fresco, propício para a preparação das carnes, muitas famílias fazem a matação do porco, que é uma festa familiar e de amigos. No pequeno povoado, acontecem, por vezes, mais de meia dúzia de matações no mesmo dia. A matação, para além da função económica que representa, tem uma função social, pelos laços de sociabilidade e de reciprocidade que fomenta, quer entre famílias, quer entra vizinhos. É um verdadeiro dia de festa, que envolve as pessoas em momentos de fraternidade e de alegria. É, também, pela matação que muitas desavenças desaparecem entre familiares, que aproveitam a circunstância para se reconciliarem.


Ruínas de uma furda, onde se vê a entrada para o local de recolha do suino.
Homens preparados, com os apetrechos necessários, para a matação e mulher com o alguidar, para apular o sangue, e a colher para o mexer. O cão observa.




segunda-feira, 11 de outubro de 2010

IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA



OS JESUÍTAS DO COLÉGIO DE SÃO FIEL NO CASAL DA SERRA



Depois da implantação da República, em 05 de Outubro de 1910, treze jesuítas do Colégio de São Fiel (Louriçal do Campo) abandonaram o edifício e refugiaram-se, no dia 7, em Casal da Serra, na chamada Casa Grande, que havia sido doada pelo seu último proprietário, padre Neves, à Misericórdia da Vila de São Vicente da Beira.
Por decreto de 08 de Outubro, os jesuítas foram expulsos de Portugal e, por decreto de 10 de Outubro, foi extinto o Colégio de São Fiel, que fora ocupado por uma força policial no dia 09.
Os treze jesuítas, auxiliados por pessoas do Casal da Serra, como Mariana Mendes, mulher dada às coisas da Igreja, esconderam-se numa loja da Casa Grande, sob a sala da laranjeira. A porta da loja foi tapada com molhos de mato sobre uma estrumeira improvisada. A comida era levada aos jesuítas por um alçapão, que ainda hoje existe, próximo da entrada sul para aquela sala, descendo por uma escada de varas de castanho fixada em duas covas no piso térreo da loja e apoiada num barrote junto do alçapão.
Depois de alguns dias, pela noite, gentes do Casal conduziram os jesuítas para a Lapa Escura, nas proximidades do Castelo Velho, até seguirem para Espanha levados por contrabandistas contratados para o efeito. Mariana Mendes, com alguns homens, mulheres e crianças do Casal, levavam comida aos fugitivos jesuítas, para a Lapa Escura.
Algumas mulheres do Casal da Serra iam à Espanha visitar os jesuítas que ficaram próximo da fronteira. Os jesuítas enviavam cartões de agradecimento.
Nos anos 30, Mariana Mendes recebeu uma foto de um jesuíta, que deixara crescer bigode e barbicha para disfarce, foto que, em 1940, se encontrava numa mesinha em casa daquela mulher do Casal.
Quando a família Mendes comprou, em 1911, em hasta pública a dita Casa Grande, que fora confiscada à Misericórdia pela República, foi encontrado um tinteiro e uma caneta de marfim, com aparo metálico, que os jesuítas haviam deixado sobre uma trave que sustentava o soalho da sala.
Fontes:
ROSA, J. Mendes - Colégio de S. Fiel - Ecos da Memória, Grupo de Arqueologia e Arte Centro, 2004.
Depoimentos de Mariana Mendes, José Mendes Júnior, Carolina da Cunha Mendes e Albano Mendes.


Mensurações antropométricas a um jesuíta do Colégio de São Fiel preso em Caxias.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA





O pão de milho ou broa



A broa é feita com farinha de milho branco, o mais utilizado, por produzir mais, ou milho amarelo, sendo o grão moído na azenha ou do moinho. A farinha é peneirada com peneira apropriada, para separar a farinha do farelo. Consoante se quer a farinha mais fina ou mais grosseira, assim se utiliza uma peneira com a malha mais estreita ou mais larga.

A farinha é amassada, normalmente, no lado direito da masseira.

Para amassar, junta-se à farinha de milho um punhado de farinha de centeio ou de trigo, para a massa ligar melhor e amaciar, e desfaz-se, em água morna, o crescente que é um pedaço da massa levedada, da cozedura anterior, guardada numa malga, ou fermento comercial, e junta-se o sal necessário. Depois, vai-se juntando farinha e água, enquanto se amassa com as mãos, até a massa estar bem ligada. Acabada a amassadura, alisa-se a massa com as mãos e fazem-se três ou cinco cruzes, sempre em número ímpar, na massa, com a rapadoura e reza-se a jaculatória:

Nosso Senhor te acrescente, para agora e para sempre!

Coloca-se o panal, pano branco de algodão, sobre a massa e, sobre o panal, põem-se mantas e cobertores, para a massa ficar abafada e aquecer, para fintar ou levedar. De Inverno, coloca-se mais roupa do que no Verão.

Quando a massa está levedada ou finta, cerca de duas horas depois da amassadura, no tempo quente, e três horas no tempo frio, volta a amassar-se, juntando alguma farinha, e aguarda-se um quarto de hora. Se a massa tem pouca fintadura ou pouco levedada, as broas ficam escouchadas, ou seja, a massa compacta, junta no centro, e as broas sem olhos ou orifícios. O bom pão deve ter olhos, como diz o rifoneiro:

Pão com olhos, queijo sem olhos e vinho que salte aos olhos.

Tendem-se, então, as broas cortando pedaços da massa, que está na masseira, com a rapadoura, e baqueiam-se, para que fiquem boas. O pedaço da massa é colocada numa malga, previamente enfarinhada, e agita-se a malga, para cima e para baixo, cerca umas dez vezes, de modo que a massa saia e volte a cair na malga, dando-lhe uma forma esférica.

A broa é então coloca-se na pá, de ferro ou de madeira, invertendo a malga sobre a mesma. Normalmente, este trabalho é efectuado por duas mulheres. Uma segura a pá e mete o pão no forno, a outra tira a masseira, baqueia-a e coloca-a na pá. Antes deste trabalho, é vulgar as mulheres benzerem-se para que haja uma boa cozedura. Todos os trabalhos do forno se efectuam em entreajuda, quando as cozeduras são em conjunto.

Metida a fornada, as broas estão cozidas depois de cerca de uma hora. Antes de meter as broas no forno verifica-se a temperatura deitando-se no lar, depois de ser varrido, um pouca de farinha. Se ficar negra, aguarda-se um pouco para que a temperatura desça. Se ficar alourada, o aquecimento está próprio para a cozedura normal.

Durante a cozedura, regula-se a quantidade de calor, abrindo ou fechando a porta do forno e juntando brasas junto da mesma porta.

Na altura das matações dos porcos, por vezes, metia-se carne de porco em algumas broas, de tamanho pequeno.

Cozida a broa, é retirada do forno com a pá, dão-lhe uma palmada no lar, na parte que fica em contacto com o lar do forno, para sacudir possíveis resíduos de cinza ou de farinha, e coloca-se no tabuleiro, com o lar sempre voltado para baixo. A palmada no pão tem um significado simbólico, como se acontecesse um parto, numa animação da criança para a vida.




Maçarocas de milho amarelo a secar.
Depois da amassadura, fazem-se três ou cinco cruzes, com a rapadoura, na massa.

Levedada a massa, tendem-se as broas.

Para ir ao forno, a broa é baqueada com uma malga; a lenha a arder no forno.


Broa a ser baqueada, o forno aquece.


Depois de baqueada, a broa é colocada na pá. No forno já se encontra uma.


Broa, na pá, para ser metida no forno.


Broas já cozidas, no tabuleiro.







domingo, 7 de fevereiro de 2010

A MALHA DO CENTEIO NO CASAL DA SERRA


A EIRA

A debulha dos cereais ou malha era feita na eira, segundo as técnicas tradicionais, com o mongal (magual), porque as quantidades de cereal eram pouco avultadas e as máquinas não subiam os carreiros, tortuosos e íngremes, para as fazendas. Só em 1990, chegou a primeira malhadeira mecânica ao Casal. Quem quis debulhar o pão na malhadeira, assim é conhecido o centeio, teve que transportar os molhos para um lugar acessível à máquina.

Algumas eiras eram constituídas por grandes lajedos naturais de granito, monoblocos, parecendo criadas para esse efeito. Outras eram construídas por blocos de granito aparelhados, assentes em terreno plano e ajustados uns aos outros, que ainda existem. Podem ser quadradas, rectangulares ou de forma irregular. Algumas eram feitas em terra batida, preparadas todos os anos.

Um ou dois dias antes da malha, as eiras eram varridas, limpas de quaisquer detritos e barradas, isto é, tapadas todas as irregularidades, com barro misturado com bosta de boi. Quando de terra batida, eram barradas em toda a extensão, para que as terras não se levantassem.

A MALHA

Pronta a eira, começa a malha, que compreende uma sequência de diversos trabalhos, que podem esquematizar-se do seguinte modo: astrar a “covela”, “astrar” o eirado, primeira corrida, a primeira malha, virar o eirado, segunda corrida ou segunda malha, tirar o colmo, tirar a palha miúda, a partida, “emmolhar”, fazer molhos ou feixes e atar a palha, vassourar o pão, padejar ou limpar o pão e ensacar o grão.

Manhã cedo, começa o primeiro acto da malha que consiste em astrar a covela ou cabeceira do eirado. Os molhos da palha com o grão são transportados do rolheiro ou meda, desatados e, em paveias, espalhados no topo, cimo ou cabeceira da eira, de modo a que as espigas fiquem voltadas para dentro, para o meio da eira. Esta primeira fiada é designada por covela.

Depois, é astrado o eirado, em que as paveias são espalhadas, na eira, em fiadas paralelas à covela, com as espigas voltadas para o cimo da eira. A primeira fiada fica com as espigas sobre as espigas da covela. As espigas da segunda fiada do eirado ficam sobre os caules da fiada precedente, nas proximidades das espigas desta fiada. Nas fiadas seguintes, as espigas são sempre colocadas sobre os caules das fiadas que as precedem, até o eirado estar completo ou astrado, de modo a que se vejam apenas as espigas do cereal a malhar, para que sobre elas incida a força dos manguais.

No fundo do eirado, são colocados dois molhos de pão, por malhar, para marcar a corrida ou malhadela, que é o espaço do eirado batido pelos malhadores, e para evitar que algum grão salte para fora da eira, com as batidas dos manguais. Estes molhos vão sendo mudados, para o lugar onde acabam as corridas da malha. As corridas da malha começam, normalmente, pela direita e sempre a partir das covelas da cabeceira da eira.

Preparado ou astrado o primeiro eirado, e aguardando que o Sol aqueça o eirado do cereal, para que os grãos se despeguem facilmente das espigas, os malhadores vão ao almoço que é melhorado, composto, normalmente, por miudezas de cabrito com batatas, chouriço, presunto, azeitonas, queijo fresco e curado, vinho, papas de carolo de milho ou arroz doce. Para quem quiser beber, há sempre, numa ferrada, leite de cabra cozido ou fervido.

Com o Sol a chegar, os malhadores colocam as últimas faixas de palha com o grão no eirado.

Aquecido o eirado e aconchegados os estômagos, os malhadores, dispostos em duas fileiras, frente a frente, cospem nas mãos, agarram os manguais, previamente molhados, para as correias amaciarem, e partem para a primeira corrida ou malhadela, que é logo executada com vigor, a puxar, com os pirtos dos manguais a baterem forte nas espigas, com os homens quase sempre em silêncio.

Depois de astrado o eirado, os malhadores estão prontos para começarem a malha.

As corridas começam, como foi dito, nas covela e são perpendiculares a esta. Cada conjunto de palha e grão, malhado em cada corrida, com largura igual ao comprimento dos pirtos, tem a designação de cavalo. Cada cavalo leva duas passagens, duas malhadelas: uma para baixo e outra para cima.

Os malhadores mais apegados às coisas da religião fazem o sinal da cruz, antes de começarem a malhar, sobrevivências da sacralização do trabalho, da Natureza e do grão que dá o pão, alimento essencial na dieta pobre dos serranos da Gardunha, durante longos tempos.

A malha é, normalmente mandada, conjugando o ritmo das pancadas do mangual com as vozes do mandador, quase sempre o homem mais velho e experiente. Alguns agricultores convidavam os melhores mandadores, para as suas malhas, para puxar pelos trabalhadores.

Os malhadores malham no eirado.
Dois malhadores com os pirtos do mangual ao alto, enquanto os outros dois batem com os pirtos no eirado.

Se a primeira corrida no primeiro cavalo é silenciosa, como concentração nos primeiros momentos do trabalho, logo rompe a voz do mandador, com a música rítmica da malha mandada.

“Larg’ó cavalo!...”, canta o mandador, que logo ajunta:

“Ó p’ra cima!...”, para o regresso dos malhadores à covela.

“Ó baixinho!...”, e os homens caminham vagarosamente para a cabeceira da eira, batendo suavemente o mangual, elevando-o pouco, para um pouco de descanso.

“Tir’ó burro!...”, e tiram o burro, que é desviar a palha moída ou partida, que, durante a malha foi tapar algumas espigas ainda por debulhar.

Depois de malhado um cavalo, os malhadores regressam ao cimo do eirado, para malharem outro cavalo. Um deles levanta a palha para ver o grão do centeio.

Terminada a malha do primeiro cavalo, começa a do segundo, com os gritos do mandador:

“Ó rapaziada!... Vai!...”

“Ó riba!...”

Ó minha alma!...”

Os malhadores animam-se e puxam pelas forças. Os manguais vão ao pino, sobre as cabeças, e malham fortemente sobre a palha. E os grãos do centeio saltam.

“Ó puxa!...”, “Ó vai!...”

“O vinho ainda não fez cócegas!...”

No final da malhadela de cada eirado, há o direito a um copo de vinho.

E a malha continua, com o mandador a cantar:

“Ó força!...”

“Ó minha banda!...”, Baixinho!...”, e a fila do mandador malha brandamente, enquanto a oposta puxa com toda a força os manguais.

“Muda agora!...”, e a fila do mandador agita fortemente os manguais, enquanto a outra malha em ritmo brando.

“Ó puxa!...”, todos batem fortemente com os manguais.

“Ninho ao sol!...”, é a ordem para, quando todo o grão já saltou das espigas, retirarem a palha e juntarem o cereal num recanto do fundo de eira ou mesmo fora dela.

Se chegam a um local em que haja sombra sobre a eira, surge o grito:

“Ó força!..., Ó puxa!...”

“Que à sombra está marradeiro!...”(Quando o grão custa a soltar-se da espiga)

“Ó vai!..., Ó força!...”

“Este não está cochicho!...” (Não está mirrado, pequeno.)

Os malhadores alegram-se quando o cereal está grado e bem criado. Tudo serve para o mandador referir.

“Ó pr’a lá!..., Vamos virar!...”

A este mando, os malhadores vão para a covela e malham-na. A seguir, viram a covela e viram o eirado. Pegam na palha às braçadas e voltam-na de modo a que a parte de baixo fique para cima e as espigas fiquem agora voltadas para o fundo da eira, excepto as da covela, que ficam voltadas para o cimo, no sentido inverso ao da feitura do eirado inicial.

Os malhadores viram a palha para ser novamente malhada e os grão saltarem todos das espigas.

Entravessa!...” (Segunda malhadela do eirado.), grita o mandador e recomeça a malha.

“Ó puxa!..”, e os manguais agitam-se, num bailado de pirtos a rodarem nos ares.

“Tir’ó burro!...”, a palha partida é desviada.

“Larg’ó cavalo!...”, mudam de cavalo.

“Ai, minha malha!... Está no fim!...”

Acabada a entravessa, passam a tirar o colmo, que é a palha mais comprida, que não foi partida pelos manguais. O colmo é atado aos molhos com os nagalhos ou vincilhos, de dois ou três braços, consoante o comprimento, feitos de colmo, que estiveram de molho em água, na ribeira ou num tanque, para se manipularem e atarem melhor. O colmo é guardado nas lojas ou em rolheiros, com os molhos uns sobre os outros, ao ar livre, disposto de modo as águas das chuvas não penetrem neles. O colmo serve para fazer os nagalhos e foi muito utilizado para cobertura de casas e especialmente das cortes. A própria capela, construída nos anos vinte, esteve coberta a colmo durante anos.

Retirado o colmo, é aberta a palha do eirado, a palha curta e partida, que é arrastada com forquilha próprias, feitas com paus de giesta ou de castanho, com os dentes em forma de dedos, aproveitando a disposição natural dos ramos. A palha e o colmo são bem sacudidos para que saiam todos os grãos que contenham. A palha que serve para comida e para a cama dos animais é colocada em rolheiros ou guardada em palheiros.

Tirada a palha, o eirado é escanhoado por varrimento de todas as espigas, que se soltaram da palha, e do palhiço, pequenos pedaços de palha, com vassouras de giesta ou de trovisco.

Fica o grão do centeio, o chamado pão, que é amontoado, no final de toda a malha, no centro da eira, para ser padejado e limpo das impurezas com a ajuda do vento. O grão é atirado ao ar, com uma pá de madeira, própria para o efeito, para que todos os resíduos, mais leves que o grão, sejam arrastados pelo vento, caindo apenas o grão na vertical. Por vezes, é necessário esperar que faça vento para a limpeza do cereal.

O centeio, depois de limpo fica é ensacado ou depositada a granel em arcazes, separando-se o da semente, para semear no Outono, e o que é para consumo familiar ou para troca e venda.

A malha foi um acto de grande importância, porque não ter pão na arca era sinal de fome. Uma colheita boa era fonte de segurança. Por isso, a par das tecnologias tradicionais próprias, para o cultivo, a ceifa e a malha, o trabalho do cereal destinado ao pão diário revestia-se de grande simbolismo, em rituais próprios das festividades. A própria malha era uma festa.

Ainda há quem, no Casal da Serra, cumpra o ciclo anual do centeio, da sementeira ao fabrico do pão, seguindo os processos tecnológicos tradicionais, nos dias em que o pão chega de camioneta e as pessoas têm mais posses para o adquirirem no comércio.


Enquanto malhadores ainda malham, um começa a fazer molhos de palha, para ser retirada da eira.
Os malhadores começam a retirar a palha, já sem o grão, fazendo feixes que atam com nagalhos.

Depois da malha, os malhadores fazem feixes de palha, para os levarem para os rolheiros ou guardarem na corte.
Albano Mendes de Matos