quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA





O pão de milho ou broa



A broa é feita com farinha de milho branco, o mais utilizado, por produzir mais, ou milho amarelo, sendo o grão moído na azenha ou do moinho. A farinha é peneirada com peneira apropriada, para separar a farinha do farelo. Consoante se quer a farinha mais fina ou mais grosseira, assim se utiliza uma peneira com a malha mais estreita ou mais larga.

A farinha é amassada, normalmente, no lado direito da masseira.

Para amassar, junta-se à farinha de milho um punhado de farinha de centeio ou de trigo, para a massa ligar melhor e amaciar, e desfaz-se, em água morna, o crescente que é um pedaço da massa levedada, da cozedura anterior, guardada numa malga, ou fermento comercial, e junta-se o sal necessário. Depois, vai-se juntando farinha e água, enquanto se amassa com as mãos, até a massa estar bem ligada. Acabada a amassadura, alisa-se a massa com as mãos e fazem-se três ou cinco cruzes, sempre em número ímpar, na massa, com a rapadoura e reza-se a jaculatória:

Nosso Senhor te acrescente, para agora e para sempre!

Coloca-se o panal, pano branco de algodão, sobre a massa e, sobre o panal, põem-se mantas e cobertores, para a massa ficar abafada e aquecer, para fintar ou levedar. De Inverno, coloca-se mais roupa do que no Verão.

Quando a massa está levedada ou finta, cerca de duas horas depois da amassadura, no tempo quente, e três horas no tempo frio, volta a amassar-se, juntando alguma farinha, e aguarda-se um quarto de hora. Se a massa tem pouca fintadura ou pouco levedada, as broas ficam escouchadas, ou seja, a massa compacta, junta no centro, e as broas sem olhos ou orifícios. O bom pão deve ter olhos, como diz o rifoneiro:

Pão com olhos, queijo sem olhos e vinho que salte aos olhos.

Tendem-se, então, as broas cortando pedaços da massa, que está na masseira, com a rapadoura, e baqueiam-se, para que fiquem boas. O pedaço da massa é colocada numa malga, previamente enfarinhada, e agita-se a malga, para cima e para baixo, cerca umas dez vezes, de modo que a massa saia e volte a cair na malga, dando-lhe uma forma esférica.

A broa é então coloca-se na pá, de ferro ou de madeira, invertendo a malga sobre a mesma. Normalmente, este trabalho é efectuado por duas mulheres. Uma segura a pá e mete o pão no forno, a outra tira a masseira, baqueia-a e coloca-a na pá. Antes deste trabalho, é vulgar as mulheres benzerem-se para que haja uma boa cozedura. Todos os trabalhos do forno se efectuam em entreajuda, quando as cozeduras são em conjunto.

Metida a fornada, as broas estão cozidas depois de cerca de uma hora. Antes de meter as broas no forno verifica-se a temperatura deitando-se no lar, depois de ser varrido, um pouca de farinha. Se ficar negra, aguarda-se um pouco para que a temperatura desça. Se ficar alourada, o aquecimento está próprio para a cozedura normal.

Durante a cozedura, regula-se a quantidade de calor, abrindo ou fechando a porta do forno e juntando brasas junto da mesma porta.

Na altura das matações dos porcos, por vezes, metia-se carne de porco em algumas broas, de tamanho pequeno.

Cozida a broa, é retirada do forno com a pá, dão-lhe uma palmada no lar, na parte que fica em contacto com o lar do forno, para sacudir possíveis resíduos de cinza ou de farinha, e coloca-se no tabuleiro, com o lar sempre voltado para baixo. A palmada no pão tem um significado simbólico, como se acontecesse um parto, numa animação da criança para a vida.




Maçarocas de milho amarelo a secar.
Depois da amassadura, fazem-se três ou cinco cruzes, com a rapadoura, na massa.

Levedada a massa, tendem-se as broas.

Para ir ao forno, a broa é baqueada com uma malga; a lenha a arder no forno.


Broa a ser baqueada, o forno aquece.


Depois de baqueada, a broa é colocada na pá. No forno já se encontra uma.


Broa, na pá, para ser metida no forno.


Broas já cozidas, no tabuleiro.







domingo, 7 de fevereiro de 2010

A MALHA DO CENTEIO NO CASAL DA SERRA


A EIRA

A debulha dos cereais ou malha era feita na eira, segundo as técnicas tradicionais, com o mongal (magual), porque as quantidades de cereal eram pouco avultadas e as máquinas não subiam os carreiros, tortuosos e íngremes, para as fazendas. Só em 1990, chegou a primeira malhadeira mecânica ao Casal. Quem quis debulhar o pão na malhadeira, assim é conhecido o centeio, teve que transportar os molhos para um lugar acessível à máquina.

Algumas eiras eram constituídas por grandes lajedos naturais de granito, monoblocos, parecendo criadas para esse efeito. Outras eram construídas por blocos de granito aparelhados, assentes em terreno plano e ajustados uns aos outros, que ainda existem. Podem ser quadradas, rectangulares ou de forma irregular. Algumas eram feitas em terra batida, preparadas todos os anos.

Um ou dois dias antes da malha, as eiras eram varridas, limpas de quaisquer detritos e barradas, isto é, tapadas todas as irregularidades, com barro misturado com bosta de boi. Quando de terra batida, eram barradas em toda a extensão, para que as terras não se levantassem.

A MALHA

Pronta a eira, começa a malha, que compreende uma sequência de diversos trabalhos, que podem esquematizar-se do seguinte modo: astrar a “covela”, “astrar” o eirado, primeira corrida, a primeira malha, virar o eirado, segunda corrida ou segunda malha, tirar o colmo, tirar a palha miúda, a partida, “emmolhar”, fazer molhos ou feixes e atar a palha, vassourar o pão, padejar ou limpar o pão e ensacar o grão.

Manhã cedo, começa o primeiro acto da malha que consiste em astrar a covela ou cabeceira do eirado. Os molhos da palha com o grão são transportados do rolheiro ou meda, desatados e, em paveias, espalhados no topo, cimo ou cabeceira da eira, de modo a que as espigas fiquem voltadas para dentro, para o meio da eira. Esta primeira fiada é designada por covela.

Depois, é astrado o eirado, em que as paveias são espalhadas, na eira, em fiadas paralelas à covela, com as espigas voltadas para o cimo da eira. A primeira fiada fica com as espigas sobre as espigas da covela. As espigas da segunda fiada do eirado ficam sobre os caules da fiada precedente, nas proximidades das espigas desta fiada. Nas fiadas seguintes, as espigas são sempre colocadas sobre os caules das fiadas que as precedem, até o eirado estar completo ou astrado, de modo a que se vejam apenas as espigas do cereal a malhar, para que sobre elas incida a força dos manguais.

No fundo do eirado, são colocados dois molhos de pão, por malhar, para marcar a corrida ou malhadela, que é o espaço do eirado batido pelos malhadores, e para evitar que algum grão salte para fora da eira, com as batidas dos manguais. Estes molhos vão sendo mudados, para o lugar onde acabam as corridas da malha. As corridas da malha começam, normalmente, pela direita e sempre a partir das covelas da cabeceira da eira.

Preparado ou astrado o primeiro eirado, e aguardando que o Sol aqueça o eirado do cereal, para que os grãos se despeguem facilmente das espigas, os malhadores vão ao almoço que é melhorado, composto, normalmente, por miudezas de cabrito com batatas, chouriço, presunto, azeitonas, queijo fresco e curado, vinho, papas de carolo de milho ou arroz doce. Para quem quiser beber, há sempre, numa ferrada, leite de cabra cozido ou fervido.

Com o Sol a chegar, os malhadores colocam as últimas faixas de palha com o grão no eirado.

Aquecido o eirado e aconchegados os estômagos, os malhadores, dispostos em duas fileiras, frente a frente, cospem nas mãos, agarram os manguais, previamente molhados, para as correias amaciarem, e partem para a primeira corrida ou malhadela, que é logo executada com vigor, a puxar, com os pirtos dos manguais a baterem forte nas espigas, com os homens quase sempre em silêncio.

Depois de astrado o eirado, os malhadores estão prontos para começarem a malha.

As corridas começam, como foi dito, nas covela e são perpendiculares a esta. Cada conjunto de palha e grão, malhado em cada corrida, com largura igual ao comprimento dos pirtos, tem a designação de cavalo. Cada cavalo leva duas passagens, duas malhadelas: uma para baixo e outra para cima.

Os malhadores mais apegados às coisas da religião fazem o sinal da cruz, antes de começarem a malhar, sobrevivências da sacralização do trabalho, da Natureza e do grão que dá o pão, alimento essencial na dieta pobre dos serranos da Gardunha, durante longos tempos.

A malha é, normalmente mandada, conjugando o ritmo das pancadas do mangual com as vozes do mandador, quase sempre o homem mais velho e experiente. Alguns agricultores convidavam os melhores mandadores, para as suas malhas, para puxar pelos trabalhadores.

Os malhadores malham no eirado.
Dois malhadores com os pirtos do mangual ao alto, enquanto os outros dois batem com os pirtos no eirado.

Se a primeira corrida no primeiro cavalo é silenciosa, como concentração nos primeiros momentos do trabalho, logo rompe a voz do mandador, com a música rítmica da malha mandada.

“Larg’ó cavalo!...”, canta o mandador, que logo ajunta:

“Ó p’ra cima!...”, para o regresso dos malhadores à covela.

“Ó baixinho!...”, e os homens caminham vagarosamente para a cabeceira da eira, batendo suavemente o mangual, elevando-o pouco, para um pouco de descanso.

“Tir’ó burro!...”, e tiram o burro, que é desviar a palha moída ou partida, que, durante a malha foi tapar algumas espigas ainda por debulhar.

Depois de malhado um cavalo, os malhadores regressam ao cimo do eirado, para malharem outro cavalo. Um deles levanta a palha para ver o grão do centeio.

Terminada a malha do primeiro cavalo, começa a do segundo, com os gritos do mandador:

“Ó rapaziada!... Vai!...”

“Ó riba!...”

Ó minha alma!...”

Os malhadores animam-se e puxam pelas forças. Os manguais vão ao pino, sobre as cabeças, e malham fortemente sobre a palha. E os grãos do centeio saltam.

“Ó puxa!...”, “Ó vai!...”

“O vinho ainda não fez cócegas!...”

No final da malhadela de cada eirado, há o direito a um copo de vinho.

E a malha continua, com o mandador a cantar:

“Ó força!...”

“Ó minha banda!...”, Baixinho!...”, e a fila do mandador malha brandamente, enquanto a oposta puxa com toda a força os manguais.

“Muda agora!...”, e a fila do mandador agita fortemente os manguais, enquanto a outra malha em ritmo brando.

“Ó puxa!...”, todos batem fortemente com os manguais.

“Ninho ao sol!...”, é a ordem para, quando todo o grão já saltou das espigas, retirarem a palha e juntarem o cereal num recanto do fundo de eira ou mesmo fora dela.

Se chegam a um local em que haja sombra sobre a eira, surge o grito:

“Ó força!..., Ó puxa!...”

“Que à sombra está marradeiro!...”(Quando o grão custa a soltar-se da espiga)

“Ó vai!..., Ó força!...”

“Este não está cochicho!...” (Não está mirrado, pequeno.)

Os malhadores alegram-se quando o cereal está grado e bem criado. Tudo serve para o mandador referir.

“Ó pr’a lá!..., Vamos virar!...”

A este mando, os malhadores vão para a covela e malham-na. A seguir, viram a covela e viram o eirado. Pegam na palha às braçadas e voltam-na de modo a que a parte de baixo fique para cima e as espigas fiquem agora voltadas para o fundo da eira, excepto as da covela, que ficam voltadas para o cimo, no sentido inverso ao da feitura do eirado inicial.

Os malhadores viram a palha para ser novamente malhada e os grão saltarem todos das espigas.

Entravessa!...” (Segunda malhadela do eirado.), grita o mandador e recomeça a malha.

“Ó puxa!..”, e os manguais agitam-se, num bailado de pirtos a rodarem nos ares.

“Tir’ó burro!...”, a palha partida é desviada.

“Larg’ó cavalo!...”, mudam de cavalo.

“Ai, minha malha!... Está no fim!...”

Acabada a entravessa, passam a tirar o colmo, que é a palha mais comprida, que não foi partida pelos manguais. O colmo é atado aos molhos com os nagalhos ou vincilhos, de dois ou três braços, consoante o comprimento, feitos de colmo, que estiveram de molho em água, na ribeira ou num tanque, para se manipularem e atarem melhor. O colmo é guardado nas lojas ou em rolheiros, com os molhos uns sobre os outros, ao ar livre, disposto de modo as águas das chuvas não penetrem neles. O colmo serve para fazer os nagalhos e foi muito utilizado para cobertura de casas e especialmente das cortes. A própria capela, construída nos anos vinte, esteve coberta a colmo durante anos.

Retirado o colmo, é aberta a palha do eirado, a palha curta e partida, que é arrastada com forquilha próprias, feitas com paus de giesta ou de castanho, com os dentes em forma de dedos, aproveitando a disposição natural dos ramos. A palha e o colmo são bem sacudidos para que saiam todos os grãos que contenham. A palha que serve para comida e para a cama dos animais é colocada em rolheiros ou guardada em palheiros.

Tirada a palha, o eirado é escanhoado por varrimento de todas as espigas, que se soltaram da palha, e do palhiço, pequenos pedaços de palha, com vassouras de giesta ou de trovisco.

Fica o grão do centeio, o chamado pão, que é amontoado, no final de toda a malha, no centro da eira, para ser padejado e limpo das impurezas com a ajuda do vento. O grão é atirado ao ar, com uma pá de madeira, própria para o efeito, para que todos os resíduos, mais leves que o grão, sejam arrastados pelo vento, caindo apenas o grão na vertical. Por vezes, é necessário esperar que faça vento para a limpeza do cereal.

O centeio, depois de limpo fica é ensacado ou depositada a granel em arcazes, separando-se o da semente, para semear no Outono, e o que é para consumo familiar ou para troca e venda.

A malha foi um acto de grande importância, porque não ter pão na arca era sinal de fome. Uma colheita boa era fonte de segurança. Por isso, a par das tecnologias tradicionais próprias, para o cultivo, a ceifa e a malha, o trabalho do cereal destinado ao pão diário revestia-se de grande simbolismo, em rituais próprios das festividades. A própria malha era uma festa.

Ainda há quem, no Casal da Serra, cumpra o ciclo anual do centeio, da sementeira ao fabrico do pão, seguindo os processos tecnológicos tradicionais, nos dias em que o pão chega de camioneta e as pessoas têm mais posses para o adquirirem no comércio.


Enquanto malhadores ainda malham, um começa a fazer molhos de palha, para ser retirada da eira.
Os malhadores começam a retirar a palha, já sem o grão, fazendo feixes que atam com nagalhos.

Depois da malha, os malhadores fazem feixes de palha, para os levarem para os rolheiros ou guardarem na corte.
Albano Mendes de Matos