sábado, 18 de dezembro de 2010

A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA

A MATAÇÃO

II - A MORTE DO PORCO

Manhã cedo, os convidados dirigem-se para a casa da matação, onde são recebidos festivamente, com oferta de bebidas e de bolos. Logo tomam o café ou uma refeição ligeira. É o começo da festa, que se prolonga por todo o dia.

Feitos os preparativos, para que nada falte no momento preciso, como a colocação do banco do sacrifício, fora de casa, nas proximidades da porta da loja, o alguidar de barro para aparar o sangue, a colher de pau, para o mexer, um punhado de sal e um pouco de vinagre para que não coalhe, a sangradeira ou faca para picar o coração do animal, a carqueja e a palha para chamuscar ou queimar as cerdas e a parte superficial da pele (actualmente, usa-se mais o maçarico a gás), as navalhas e os pedaços de telhas ou pedras para a limpeza de pele, depois da queima dos pelos, a água para a lavagem, a linha e a agulha para coserem o corte causado pela faca, o cordel para atarem a tripa cagueira e o chambaril, pau curvo de oliveira ou medronheiro, com chanfro nas pontas desbastadas, para dependurar o animal, os homens vão buscar o porco à furda, que esteve umas semanas a ser cevado, comendo, além da vianda normal, algumas rações de milho. No último dia de vida, o porco pouco deve comer, para as tripas estarem limpas, o mais possível. Dão-lhe comida só para entreter.

“Corricho! Corricho!”, chama o dono saltando para a furda, tentando prender o animal, com uma corda, por uma pata ou pelo pescoço.

O porco é chamado por “Corricho”, Quiá” e “Coche”, com muito carinho, pelo reconhecimento da sua importância na economia familiar.

O porco, desconfiado, olha de través e lança grunhidos, como que a adivinhar o que lhe vai suceder. Dizem os casaleiros que os porcos sabem quando vão morrer. Por isso, recusam-se a sair da furda.

Com mais ou menos custo e esforço, o porco é levado para o banco, entre risotas e ditos brejeiros. Atados o focinho e as patas, para evitar mordidelas ou sapatadas incomodativas, o animal, sempre a grunhir, é imobilizado sobre o banco. Os homens distribuem-se em redor do banco, segurando o porco para o sacrifício.

O matador lava o local onde vai enterra a lâmina da faca, por vezes, faz o sinal da cruz, e espeta a faca, entre as pernas dianteiras do animal, abaixo da papada, no direcção do coração. É necessária alguma perícia para que o animal morra rapidamente e não fique a sofrer e a resfolgar, quando a lâmina não vai certeira.

O porco, no altar do sacrifício, agita-se violentamente e solta grunhidos de aflição, sob a força dos homens. O sangue esguicha para o alguidar, onde estão o sal e o vinagre, conforme as contracções do animal, e a mulher vai mexendo sempre para que não coagule.

O porco é sempre sacrificado por um homem e o sangue é sempre recolhido por uma mulher. Estamos, por certo, perante sobrevivências de efectiva divisão sexual do trabalho, com tarefas próprias de cada sexo. Ao homem pertenciam as tarefas mais pesadas e longínquas da casa, como o abate de árvores e a caça de animais de grande porte. À mulher cabiam as tarefas mais leves e próximas da habitação, como apanha e a colheita de frutos, de ervas e a caça de animais pequenos, facto que tem a ver com os cuidados a ter com a criação dos filhos.

As ciências sociais e humanas não descuram este facto da simbologia sexual do trabalho. O homem faz penetrar a faca de matar porcos, símbolo fálico, na direcção do coração do animal, para que o sangue jorre e seja recebido pela mulher, no alguidar, símbolo sexual feminino. Faca como instrumento de trabalho do homem; alguidar como utensílio doméstico da mulher. Definidos sexualmente.

Depois dos derradeiros estertores e cosida a abertura provocada pela faca, o porco é chamuscado com paveias de carqueja ou de palha em chama e logo raspado com pedras e pedaços de telha, para ser retirada a parte superficial da pele, que empolou. As unhas são retiradas, depois de bem aquecidas, e metidas na algibeira de alguém que esteja descuidado, normalmente uma pessoa novata, para risada geral, quando esta der pelo facto. Bem lavado, por vezes com água quente, o porco é submetido à operação de barbear: corte dos pelos e das cerdas, com navalhas afiadas.

Chamuscado, barbeado e lavado, o porco é preparado para ser dependurado, normalmente na loja, no rés-do chão da habitação. É feito um corte a circundar o ânus, a tripa (chamada cagueira) é atada com um cordel e recolhida, por pressão, no interior do animal. Nas patas traseiras, são feitos dois cortes opostos, para descobrir os tendões, onde são enfiadas as pontas chanfradas do chambaril, para suspensão da carcaça do porco. O animal é transportado a braços para a loja e dependurado, com o chambaril atado num caibro, numa sonave ou num gancho fixado no tecto



Os convidados para a matação tomam a primeira refeição.

O dono vai prender o porco por uma perna, para ser levado para o local da morte.

O porco é arrastado para o local da morte; adivinha o sacrifício e oferece resistência.


Com o porco seguro, no banco, o matador arregaça a manga para o trabalho.


O matador aponta a faca no local prório para a lâmina atingir o coração.

O porco sangra e o sangue cai para um alguidar; uma mulher vai mexendo.
O porco sangra, mulher mexe o sangue.

A mulher continua a mexer o sangue.

O sangue corre aos poucos.

O sangue ainda pinga.

As última gotas de sangue caiem no alguidar.



As cerdas e os pelos do porco são queimados com carqueja a arder.


Ultimação da queima geral dos pelos e cerdas.


Enquanto um homem chamusca as unhas para retirar o casco, a quente, outro limpa as orelhas.


Depois de queimadas as cerdas e os pelos, a pele do porco é raspada com pedaços de telhas e pedras, para limpeza.


Limpa a pele do porco, é feita a barba, cortando todos restos de pelos, rente à pele, sendo então, lavado com água.


Lavado o porco, é feito um corte em volta do ânus, para soltar a tripa cagueira (recto) que é atada no extremo, para não se libertarem excrementos, a metida na carcassa pelo orifício feito pelo corte, o que está a ser feito na fotografia.






A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA



A MATAÇÃO

I - CONSIDERAÇÕES GERAIS

Na povoação de Casal da Serra, aldeia anexa à freguesia e Vila de São Vicente da Beira, implantada na vertente sul da Serra da Gardunha, a uma altitude de 700 metros, devido ao seu isolamento físico e social em que esteve mergulhada durante longos anos, ainda mantém algumas tradições em todos os campos da actividade quotidiana, bem como nos rituais festivos, manifestações que são sobrevivências de um passado remoto. Sem estrada e sem energia eléctrica até há pouco mais de duas dezenas de anos, salvo um ou outro caso, para além da emigração para França, nos anos sessenta do século xx, a população manteve-se fechada ao exterior o que condicionou uma forte endogamia de aldeia.

A emigração para França, quase sempre a salto, levou muitos homens para outros destinos, logo seguidos pelas mulheres, facto que deu uma nova dinâmica à aldeia, que se desenvolveu mercê das remessas pecuniárias enviadas, embora entrasse numa fase de desertificação demográfica. Nos dias de Verão e pelo Natal a aldeia passou a ter grande animação. Um forte sentimento de pertença a uma comunidade e um notável e atávico desejo de regresso às origens marcam indelevelmente o espírito dos casaleiros. Muitos dos regressados da emigração voltaram para o quotidiano rural, mas sem a penúria e o esforço de outros tempos. Em conjunto com os que ficaram mantêm, na aldeia, muitas das antigas tradições, embora se aperceba uma grande mudança cultural e das mentalidades, especialmente nos mais jovens. Inclui-se, neste facto, o ritual da matação do porco, como uma festa familiar.
Até ao último quartel do século XX, a população do Casal alimentava-se, praticamente, com os produtos da horta, milho, centeio, batata, couves, que cultivava nas leiras, com o azeite das oliveiras que plantava nos socalcos, quase sempre ao rés dos cômoros, para libertar o solo para as culturas, com algumas castanhas caídas dos castanheiros que restavam, com os animais de criação, o vivo, galinhas, coelhos e porco, e com o gado, a cabra, que dava o leite e o queijo diários. Por vezes, chegavam algumas sardinhas amarelecidas, acamadas em sal, em caixas à cabeça das mulheres ou sobre o dorso de um asno. Sardinha, muitas vezes dividida por dois e por três, com disputas entre os filhos ou sorteios para ver a quem calhava a cabeça do peixe.
As gentes do Casal esmeram-se a tratar o porco, criado na furda, próximo da habitação. A furda, que ainda se encontra espalhada pela povoação, é uma construção própria para o porco, composta por um compartimento coberto por palha, giestas ou telhas, onde o animal dorme, e um recinto a céu aberto, com a pia de pedra, para a comida, e o piso coberto de mato que, curtido pelas chuvas e pelos excrementos do animal, se transforma em estrume. Até aos anos setenta do século XX, normalmente, quando se construía uma casa agregava-se-lhe uma furda. Se o terreno era exíguo, procurava-se a furda num lugar próximo.
O porco é alimentado com os restos da comida e com a lavadura, água da lavagem da louça, à qual se juntam farelo, hortaliças e ervas de flora espontânea, especialmente saramagos, labaças e beldroegas.
O porco era, ainda há pouco tempo, o remedeio das famílias casaleiras durante o ano. Na salgadeira, situada em lugar fresco, normalmente na loja, havia sempre um naco de toucinho ou um osso para temperar o calo. Do fumeiro, do pote de barro ou da talha, tirava-se sempre uma morcela, uma chouriça ou um chouriço, para o conduto normal ou para oferecer a uma visita que chegasse. Na arca ou em sítio seco, para não tomarem bolor, estavam as farinheiras, que serviam de conduto, a seguir ao caldo ou para acompanharem arroz branco, preparado na caçola (caçarola) O presunto, contido num saco de tecido branco, era guardado para os dias de festa ou para as merendas, numa ida a romaria ou a feira.
A matação, os enchidos e as carnes salgadas são objecto de manipulação cuidadosa, tratamento e conservação através de tecnologias tradicionais apropriadas, segredos de famílias e saberes de homens e de mulheres acumulados durante os tempos, passados de geração em geração.
Nos meses de Dezembro a Fevereiro, quase sempre aos fins-de-semana, em que o tempo está fresco, propício para a preparação das carnes, muitas famílias fazem a matação do porco, que é uma festa familiar e de amigos. No pequeno povoado, acontecem, por vezes, mais de meia dúzia de matações no mesmo dia. A matação, para além da função económica que representa, tem uma função social, pelos laços de sociabilidade e de reciprocidade que fomenta, quer entre famílias, quer entra vizinhos. É um verdadeiro dia de festa, que envolve as pessoas em momentos de fraternidade e de alegria. É, também, pela matação que muitas desavenças desaparecem entre familiares, que aproveitam a circunstância para se reconciliarem.


Ruínas de uma furda, onde se vê a entrada para o local de recolha do suino.
Homens preparados, com os apetrechos necessários, para a matação e mulher com o alguidar, para apular o sangue, e a colher para o mexer. O cão observa.