sábado, 18 de dezembro de 2010

A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA



A MATAÇÃO

I - CONSIDERAÇÕES GERAIS

Na povoação de Casal da Serra, aldeia anexa à freguesia e Vila de São Vicente da Beira, implantada na vertente sul da Serra da Gardunha, a uma altitude de 700 metros, devido ao seu isolamento físico e social em que esteve mergulhada durante longos anos, ainda mantém algumas tradições em todos os campos da actividade quotidiana, bem como nos rituais festivos, manifestações que são sobrevivências de um passado remoto. Sem estrada e sem energia eléctrica até há pouco mais de duas dezenas de anos, salvo um ou outro caso, para além da emigração para França, nos anos sessenta do século xx, a população manteve-se fechada ao exterior o que condicionou uma forte endogamia de aldeia.

A emigração para França, quase sempre a salto, levou muitos homens para outros destinos, logo seguidos pelas mulheres, facto que deu uma nova dinâmica à aldeia, que se desenvolveu mercê das remessas pecuniárias enviadas, embora entrasse numa fase de desertificação demográfica. Nos dias de Verão e pelo Natal a aldeia passou a ter grande animação. Um forte sentimento de pertença a uma comunidade e um notável e atávico desejo de regresso às origens marcam indelevelmente o espírito dos casaleiros. Muitos dos regressados da emigração voltaram para o quotidiano rural, mas sem a penúria e o esforço de outros tempos. Em conjunto com os que ficaram mantêm, na aldeia, muitas das antigas tradições, embora se aperceba uma grande mudança cultural e das mentalidades, especialmente nos mais jovens. Inclui-se, neste facto, o ritual da matação do porco, como uma festa familiar.
Até ao último quartel do século XX, a população do Casal alimentava-se, praticamente, com os produtos da horta, milho, centeio, batata, couves, que cultivava nas leiras, com o azeite das oliveiras que plantava nos socalcos, quase sempre ao rés dos cômoros, para libertar o solo para as culturas, com algumas castanhas caídas dos castanheiros que restavam, com os animais de criação, o vivo, galinhas, coelhos e porco, e com o gado, a cabra, que dava o leite e o queijo diários. Por vezes, chegavam algumas sardinhas amarelecidas, acamadas em sal, em caixas à cabeça das mulheres ou sobre o dorso de um asno. Sardinha, muitas vezes dividida por dois e por três, com disputas entre os filhos ou sorteios para ver a quem calhava a cabeça do peixe.
As gentes do Casal esmeram-se a tratar o porco, criado na furda, próximo da habitação. A furda, que ainda se encontra espalhada pela povoação, é uma construção própria para o porco, composta por um compartimento coberto por palha, giestas ou telhas, onde o animal dorme, e um recinto a céu aberto, com a pia de pedra, para a comida, e o piso coberto de mato que, curtido pelas chuvas e pelos excrementos do animal, se transforma em estrume. Até aos anos setenta do século XX, normalmente, quando se construía uma casa agregava-se-lhe uma furda. Se o terreno era exíguo, procurava-se a furda num lugar próximo.
O porco é alimentado com os restos da comida e com a lavadura, água da lavagem da louça, à qual se juntam farelo, hortaliças e ervas de flora espontânea, especialmente saramagos, labaças e beldroegas.
O porco era, ainda há pouco tempo, o remedeio das famílias casaleiras durante o ano. Na salgadeira, situada em lugar fresco, normalmente na loja, havia sempre um naco de toucinho ou um osso para temperar o calo. Do fumeiro, do pote de barro ou da talha, tirava-se sempre uma morcela, uma chouriça ou um chouriço, para o conduto normal ou para oferecer a uma visita que chegasse. Na arca ou em sítio seco, para não tomarem bolor, estavam as farinheiras, que serviam de conduto, a seguir ao caldo ou para acompanharem arroz branco, preparado na caçola (caçarola) O presunto, contido num saco de tecido branco, era guardado para os dias de festa ou para as merendas, numa ida a romaria ou a feira.
A matação, os enchidos e as carnes salgadas são objecto de manipulação cuidadosa, tratamento e conservação através de tecnologias tradicionais apropriadas, segredos de famílias e saberes de homens e de mulheres acumulados durante os tempos, passados de geração em geração.
Nos meses de Dezembro a Fevereiro, quase sempre aos fins-de-semana, em que o tempo está fresco, propício para a preparação das carnes, muitas famílias fazem a matação do porco, que é uma festa familiar e de amigos. No pequeno povoado, acontecem, por vezes, mais de meia dúzia de matações no mesmo dia. A matação, para além da função económica que representa, tem uma função social, pelos laços de sociabilidade e de reciprocidade que fomenta, quer entre famílias, quer entra vizinhos. É um verdadeiro dia de festa, que envolve as pessoas em momentos de fraternidade e de alegria. É, também, pela matação que muitas desavenças desaparecem entre familiares, que aproveitam a circunstância para se reconciliarem.


Ruínas de uma furda, onde se vê a entrada para o local de recolha do suino.
Homens preparados, com os apetrechos necessários, para a matação e mulher com o alguidar, para apular o sangue, e a colher para o mexer. O cão observa.




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