terça-feira, 24 de janeiro de 2012

RANCHO FOLCLÓRICO E HINO AO CASAL DA SERRA



Nos meados do século passado, o Casal da Serra apresentou alguns ranchos folclóricos, que se exibiam em festividades e cortejos de oferendas, e teve o seu o seu hino, elaborado com palavras simples, que era cantado, com galhardia, quer por grupos, no trabalho, quer pelos ranchos, nas suas actuações.


Rancho Folclórico do Casal da Serra, em 1950.


HINO AO CASAL DA SERRA

Das terras de Portugal,
A nossa não tem rival,
É, por certo, a mais bonita,
Das terras de Portugal.

Estribilho

Casal da Serra,
Terra natal,
Cantinhos lindos
De Portugal.
Vamos cantá-los,
Em ternos cantos,
Mostrando ao mundo
Os seus encantos.

Gente boa, gente humilde,
Onde a amizade se encerra,
Cantai de novo a canção
De louvores à nossa terra.





Albano Mendes de Matos

sábado, 29 de janeiro de 2011

A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA

A MATAÇÃO

V - PAIOS, CHOURIÇAS, CHOURIÇOS E FARINHEIRAS

O porco fica a escorrer até ao dia seguinte, em que é desmanchado, pela manhã, por um homem entendido no corte das carnes, que são separadas consoante o destino a dar-lhes. Para a salgadeira, arca com sal, para serem comidos segundo as necessidades, vão os ossos, a cabeça, o toucinho, os chispes, as costelas e os presuntos, estes a um lado, para serem tratados. Para os enchidos de carne, os chouriços, os paios e as chouriças, destinam-se as febras e os lombos. Para as farinheiras, separam-se as banhas e alguns ossos.

Os chouriços e paios são confeccionados com as melhores carnes magras e entremeadas, com menos gordura e com os lombos. As febras são cortadas aos pedacitos, sempre trabalho de mulheres, para grandes alguidares, onde fica a temperar, depois de se lhes juntar colorau, alho, sal e vinho branco, ou seja a massa dos chouriços. Faz-se a prova levando ao lume, num tacho, um pouco da massa que, depois de cozida, é dada a saborear a algumas pessoas, para ficar, se o paladar for bom, ou adicionar-se alguma condimento se necessário. Os chouriços são enformados nas tripas grossas, intestino grosso do porco, que apresenta diversas reentrâncias e protuberâncias, que lhes dão formas características. São talhadas em pedaços do mesmo tamanho e cosidas, com agulha e linha, na parte inferior, em forma de saco. Depois de cheias, a parte superior é atada com guita, deixando uma argola para serem dependuradas no fumeiro. Quando os chouriços são pesados, são atados com guita e espetados pauzitos afiados, na parte superior, para suportarem o peso.

As chouriças são preparadas com a massa idêntica à dos chouriços, mas com as carnes mais gordurosas, e enchidas em tripas que sobrem das morcelas miúdas e em tripas compradas no comércio, porque as tripas do porco não chegam para todo o enchido. A prova é feita como nos chouriços. As chouriças têm a forma de ferradura, tal como as morcelas, atadas com a mesma técnica destas. Também pode ser enchida a bexiga do porco com massa das chouriças, para ser comida no Entrudo, tal como o bucho, como comida gorda ritual.

As farinheiras são preparadas com o caldo obtido pelo cozimento das banhas, que se desfazem, e de ossos gordurosos, algumas febras e toucinho desfiados ou picados, onde se mistura farinha de centeio ou de trigo, sal e, por vezes, colorau para dar cor. A massa é provada em frio ou aquecidas num tacho, até ficar alourada e cozida. Neste último caso, são os chamados cagarrapos, que as crianças sempre pedem. São enchidas em tripas adquiridas no mercado e acabadas com a mesma técnica das morcelas, com a forma de ferradura.

Por vezes, ou quando as carnes abundam, são confeccionados chouriços mouros, enchido preparado com sangue, pulmões, coração, gorduras rijas e carnes ensanguentadas, tudo cortado aos pedacinhos, com vinho tinto ou branco, alho e sal, com a massa contida nas mesmas tripas das chouriças e das farinheiras.

Todos os enchidos são curados, secos ou fumados no fumeiro, colocado no tecto por cima da lareira. Para um bom fumeiro devem queimar-se, na lareira, estevas, giestas e rama de pinheiro.

O porco começa a ser desmanchado.



Chouriços no fumeiro.

Paios e chouriços, em baixo, chouriças, no centro, e morcelas, ao cimo, no fumeiro.


Farinheiras no fumeiro.

Morcela e farinheira para para serem cozinhadas.













A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA

A MATAÇÃO

IV - AS MORCELAS

Chegadas as mulheres com as tripas lavadas, segue-se o lauto almoço, já acompanhado com carnes do porco abatido. Um refogado de cebola, alho, vinagre, azeite, pedacitos de toucinho do soventre e fígado, simples ou acompanhando batatas cozidas.

A seguir ao almoço, são preparadas as morcelas, trabalho só de mulheres. Mas não podem estar grávidas[1], porque podem as crianças nascer com manchas vermelhas no corpo. Nem estarem com as regras, porque isso pode estragar as carnes, se as tocarem. Assim existem as crenças e as superstições. Para as morcelas de assar, morcelas miúdas ou morcelas pequenas, enchidas nas tripas finas ou miúdas, o intestino delgado, são utilizadas as gorduras macias que envolvem as tripas, o chamado véu, algumas gorduras soltas, migadas ou cortadas aos pedacitos com tesouras, sangue do porco, sumo de laranja, cominhos, sal e, por vezes, vinho branco. As morcelas de cozer, morcelas grandes ou grossas, enchidas no último pedaço do intestino grosso, a tripa cagueira, são preparadas com sangue, gorduras macias, rins, pulmões, coração, carnes gordas ensanguentadas, as carnes migadas ou cortadas com tesouras, em pedacinhos, cominhos, sumo de laranja, um pouco de vinho branco e sal. As tripas são cheias de massa das morcelas e atadas nos extremos, com uma guita, dando-lhes a forma de ferradura.

A massa das morcelas é depositada nas tripas com o auxílio das enchedeiras, utensílios de lata ou de alumínio em forma de funil. Umas largas e outras estreitas, para utilização consoante o diâmetro das tripas. Antes do enchimento, é feita a prova da massa das morcelas. Enche-se uma, coze-se e prova-se, juntando-se condimentos se for necessário. Se os homens provarem, é momento para a ingestão de mais um copo de vinho.

Depois de enchidas, as morcelas são submetidas a uma ligeira cozedura em água aquecida em grande panela de ferro, na lareira. Estão cozidas quando, picadas com um alfinete, não gemam sangue. À medida que vão estando cozidas, são enfiadas nas varas, suspensas pelas guitas que as atam, e colocadas no fumeiro, situado por cima da lareira, onde ficam a secar por uns dias.

Por vezes, era enchido o bucho, estômago do porco, com a massa das morcelas grossas, mas enriquecida com outras carnes, para ser consumido no Domingo Gordo e no Dia de Carnaval, como comida ritual, últimos dias de libações e de desregramentos de todos os géneros, antes da Quaresma, que é tempo de abstinências, de jejuns e de penitências.


[1] Agustina Bessa Luís, no romance A Sibila, refere este facto, no Douro.





Separação das tripas e das gorduras.

Lavagem das tripas.

Migar as carnes para as morcelas.

Encher as morcelas com as enchedeiras.

Encher as morcelas, à esquerda, encher o bucho, à direita.

Morcelas a secarem no fumeiro.



A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA



A MATAÇÃO

III - A ABERTURA DO PORCO

Enquanto algumas mulheres preparam o almoço, o matador procede à abertura do porco, auxiliado por outros, entre o escorropichar de copos de vinho. Faz dois cortes paralelos, distanciados cerca de um palmo, ao longo do peito e do abdómen do porco, desde a queixada até às proximidades da abertura do ânus, destaca a faixa de toucinho demarcada pelos dois golpes, ou seja, o soventre, corta metade para as mulheres prepararem para o almoço, em conjunto com pedaços de fígado, e atira a parte restante para trás, por entre as pernas do porco.

O porco é, depois, aberto de alto a baixo, sendo as tripas, o coração, o fígado e os pulmões (o bofe) recolhidos num tabuleiro. As duas banhas são puxadas para fora e esticadas com uma cana ou um pau, para secarem.

Algumas mulheres, não empenhadas na confecção do almoço, separam todas as gorduras que envolvem as tripas e vão lavar estas à ribeira ou a um local de águas correntes. As tripas miúdas, o intestino delgado, são limadas com a ajuda de fios de giesta dobrados, isto é, são-lhes retiradas, por fricção, primeiro, a camada superficial exterior, e, depois de voltadas, a camada superficial interior. As tripas grossas, o intestino grosso, são limpas, voltadas e bem lavadas. Durante algum tempo, todas as tripas se põem de molho, com água, laranjas cortadas aos gomos e vinagre.

Enquanto as mulheres estão fora de casa, na lavagem das tripas, os homens contam anedotas e histórias de cariz erótico, quando os vapores do vinho e da aguardente começam a fazer os seus efeitos hilariantes. O mais habilidoso nas artes da culinária prepara o petisco para os homens, conhecido por comer a passarinha: uma fritura de pedacitos de fígado, baço (a passarinha), bofe, rins, febras, cebola, pimentão, alhos, malagueta e azeite. O garrafão do vinho está sempre próximo, para as goelas não secarem.




O porco é pendurado para ser aberto.



O porco está a ser aberto.

Aberto o porco, com as banhas a secar, os homens bebem vinho.


Um homem prepara as varas,para nelas serem colocadas as morcelas e secarem no fumeiro.





sábado, 18 de dezembro de 2010

A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA

A MATAÇÃO

II - A MORTE DO PORCO

Manhã cedo, os convidados dirigem-se para a casa da matação, onde são recebidos festivamente, com oferta de bebidas e de bolos. Logo tomam o café ou uma refeição ligeira. É o começo da festa, que se prolonga por todo o dia.

Feitos os preparativos, para que nada falte no momento preciso, como a colocação do banco do sacrifício, fora de casa, nas proximidades da porta da loja, o alguidar de barro para aparar o sangue, a colher de pau, para o mexer, um punhado de sal e um pouco de vinagre para que não coalhe, a sangradeira ou faca para picar o coração do animal, a carqueja e a palha para chamuscar ou queimar as cerdas e a parte superficial da pele (actualmente, usa-se mais o maçarico a gás), as navalhas e os pedaços de telhas ou pedras para a limpeza de pele, depois da queima dos pelos, a água para a lavagem, a linha e a agulha para coserem o corte causado pela faca, o cordel para atarem a tripa cagueira e o chambaril, pau curvo de oliveira ou medronheiro, com chanfro nas pontas desbastadas, para dependurar o animal, os homens vão buscar o porco à furda, que esteve umas semanas a ser cevado, comendo, além da vianda normal, algumas rações de milho. No último dia de vida, o porco pouco deve comer, para as tripas estarem limpas, o mais possível. Dão-lhe comida só para entreter.

“Corricho! Corricho!”, chama o dono saltando para a furda, tentando prender o animal, com uma corda, por uma pata ou pelo pescoço.

O porco é chamado por “Corricho”, Quiá” e “Coche”, com muito carinho, pelo reconhecimento da sua importância na economia familiar.

O porco, desconfiado, olha de través e lança grunhidos, como que a adivinhar o que lhe vai suceder. Dizem os casaleiros que os porcos sabem quando vão morrer. Por isso, recusam-se a sair da furda.

Com mais ou menos custo e esforço, o porco é levado para o banco, entre risotas e ditos brejeiros. Atados o focinho e as patas, para evitar mordidelas ou sapatadas incomodativas, o animal, sempre a grunhir, é imobilizado sobre o banco. Os homens distribuem-se em redor do banco, segurando o porco para o sacrifício.

O matador lava o local onde vai enterra a lâmina da faca, por vezes, faz o sinal da cruz, e espeta a faca, entre as pernas dianteiras do animal, abaixo da papada, no direcção do coração. É necessária alguma perícia para que o animal morra rapidamente e não fique a sofrer e a resfolgar, quando a lâmina não vai certeira.

O porco, no altar do sacrifício, agita-se violentamente e solta grunhidos de aflição, sob a força dos homens. O sangue esguicha para o alguidar, onde estão o sal e o vinagre, conforme as contracções do animal, e a mulher vai mexendo sempre para que não coagule.

O porco é sempre sacrificado por um homem e o sangue é sempre recolhido por uma mulher. Estamos, por certo, perante sobrevivências de efectiva divisão sexual do trabalho, com tarefas próprias de cada sexo. Ao homem pertenciam as tarefas mais pesadas e longínquas da casa, como o abate de árvores e a caça de animais de grande porte. À mulher cabiam as tarefas mais leves e próximas da habitação, como apanha e a colheita de frutos, de ervas e a caça de animais pequenos, facto que tem a ver com os cuidados a ter com a criação dos filhos.

As ciências sociais e humanas não descuram este facto da simbologia sexual do trabalho. O homem faz penetrar a faca de matar porcos, símbolo fálico, na direcção do coração do animal, para que o sangue jorre e seja recebido pela mulher, no alguidar, símbolo sexual feminino. Faca como instrumento de trabalho do homem; alguidar como utensílio doméstico da mulher. Definidos sexualmente.

Depois dos derradeiros estertores e cosida a abertura provocada pela faca, o porco é chamuscado com paveias de carqueja ou de palha em chama e logo raspado com pedras e pedaços de telha, para ser retirada a parte superficial da pele, que empolou. As unhas são retiradas, depois de bem aquecidas, e metidas na algibeira de alguém que esteja descuidado, normalmente uma pessoa novata, para risada geral, quando esta der pelo facto. Bem lavado, por vezes com água quente, o porco é submetido à operação de barbear: corte dos pelos e das cerdas, com navalhas afiadas.

Chamuscado, barbeado e lavado, o porco é preparado para ser dependurado, normalmente na loja, no rés-do chão da habitação. É feito um corte a circundar o ânus, a tripa (chamada cagueira) é atada com um cordel e recolhida, por pressão, no interior do animal. Nas patas traseiras, são feitos dois cortes opostos, para descobrir os tendões, onde são enfiadas as pontas chanfradas do chambaril, para suspensão da carcaça do porco. O animal é transportado a braços para a loja e dependurado, com o chambaril atado num caibro, numa sonave ou num gancho fixado no tecto



Os convidados para a matação tomam a primeira refeição.

O dono vai prender o porco por uma perna, para ser levado para o local da morte.

O porco é arrastado para o local da morte; adivinha o sacrifício e oferece resistência.


Com o porco seguro, no banco, o matador arregaça a manga para o trabalho.


O matador aponta a faca no local prório para a lâmina atingir o coração.

O porco sangra e o sangue cai para um alguidar; uma mulher vai mexendo.
O porco sangra, mulher mexe o sangue.

A mulher continua a mexer o sangue.

O sangue corre aos poucos.

O sangue ainda pinga.

As última gotas de sangue caiem no alguidar.



As cerdas e os pelos do porco são queimados com carqueja a arder.


Ultimação da queima geral dos pelos e cerdas.


Enquanto um homem chamusca as unhas para retirar o casco, a quente, outro limpa as orelhas.


Depois de queimadas as cerdas e os pelos, a pele do porco é raspada com pedaços de telhas e pedras, para limpeza.


Limpa a pele do porco, é feita a barba, cortando todos restos de pelos, rente à pele, sendo então, lavado com água.


Lavado o porco, é feito um corte em volta do ânus, para soltar a tripa cagueira (recto) que é atada no extremo, para não se libertarem excrementos, a metida na carcassa pelo orifício feito pelo corte, o que está a ser feito na fotografia.






A ALIMENTAÇÃO NO CASAL DA SERRA



A MATAÇÃO

I - CONSIDERAÇÕES GERAIS

Na povoação de Casal da Serra, aldeia anexa à freguesia e Vila de São Vicente da Beira, implantada na vertente sul da Serra da Gardunha, a uma altitude de 700 metros, devido ao seu isolamento físico e social em que esteve mergulhada durante longos anos, ainda mantém algumas tradições em todos os campos da actividade quotidiana, bem como nos rituais festivos, manifestações que são sobrevivências de um passado remoto. Sem estrada e sem energia eléctrica até há pouco mais de duas dezenas de anos, salvo um ou outro caso, para além da emigração para França, nos anos sessenta do século xx, a população manteve-se fechada ao exterior o que condicionou uma forte endogamia de aldeia.

A emigração para França, quase sempre a salto, levou muitos homens para outros destinos, logo seguidos pelas mulheres, facto que deu uma nova dinâmica à aldeia, que se desenvolveu mercê das remessas pecuniárias enviadas, embora entrasse numa fase de desertificação demográfica. Nos dias de Verão e pelo Natal a aldeia passou a ter grande animação. Um forte sentimento de pertença a uma comunidade e um notável e atávico desejo de regresso às origens marcam indelevelmente o espírito dos casaleiros. Muitos dos regressados da emigração voltaram para o quotidiano rural, mas sem a penúria e o esforço de outros tempos. Em conjunto com os que ficaram mantêm, na aldeia, muitas das antigas tradições, embora se aperceba uma grande mudança cultural e das mentalidades, especialmente nos mais jovens. Inclui-se, neste facto, o ritual da matação do porco, como uma festa familiar.
Até ao último quartel do século XX, a população do Casal alimentava-se, praticamente, com os produtos da horta, milho, centeio, batata, couves, que cultivava nas leiras, com o azeite das oliveiras que plantava nos socalcos, quase sempre ao rés dos cômoros, para libertar o solo para as culturas, com algumas castanhas caídas dos castanheiros que restavam, com os animais de criação, o vivo, galinhas, coelhos e porco, e com o gado, a cabra, que dava o leite e o queijo diários. Por vezes, chegavam algumas sardinhas amarelecidas, acamadas em sal, em caixas à cabeça das mulheres ou sobre o dorso de um asno. Sardinha, muitas vezes dividida por dois e por três, com disputas entre os filhos ou sorteios para ver a quem calhava a cabeça do peixe.
As gentes do Casal esmeram-se a tratar o porco, criado na furda, próximo da habitação. A furda, que ainda se encontra espalhada pela povoação, é uma construção própria para o porco, composta por um compartimento coberto por palha, giestas ou telhas, onde o animal dorme, e um recinto a céu aberto, com a pia de pedra, para a comida, e o piso coberto de mato que, curtido pelas chuvas e pelos excrementos do animal, se transforma em estrume. Até aos anos setenta do século XX, normalmente, quando se construía uma casa agregava-se-lhe uma furda. Se o terreno era exíguo, procurava-se a furda num lugar próximo.
O porco é alimentado com os restos da comida e com a lavadura, água da lavagem da louça, à qual se juntam farelo, hortaliças e ervas de flora espontânea, especialmente saramagos, labaças e beldroegas.
O porco era, ainda há pouco tempo, o remedeio das famílias casaleiras durante o ano. Na salgadeira, situada em lugar fresco, normalmente na loja, havia sempre um naco de toucinho ou um osso para temperar o calo. Do fumeiro, do pote de barro ou da talha, tirava-se sempre uma morcela, uma chouriça ou um chouriço, para o conduto normal ou para oferecer a uma visita que chegasse. Na arca ou em sítio seco, para não tomarem bolor, estavam as farinheiras, que serviam de conduto, a seguir ao caldo ou para acompanharem arroz branco, preparado na caçola (caçarola) O presunto, contido num saco de tecido branco, era guardado para os dias de festa ou para as merendas, numa ida a romaria ou a feira.
A matação, os enchidos e as carnes salgadas são objecto de manipulação cuidadosa, tratamento e conservação através de tecnologias tradicionais apropriadas, segredos de famílias e saberes de homens e de mulheres acumulados durante os tempos, passados de geração em geração.
Nos meses de Dezembro a Fevereiro, quase sempre aos fins-de-semana, em que o tempo está fresco, propício para a preparação das carnes, muitas famílias fazem a matação do porco, que é uma festa familiar e de amigos. No pequeno povoado, acontecem, por vezes, mais de meia dúzia de matações no mesmo dia. A matação, para além da função económica que representa, tem uma função social, pelos laços de sociabilidade e de reciprocidade que fomenta, quer entre famílias, quer entra vizinhos. É um verdadeiro dia de festa, que envolve as pessoas em momentos de fraternidade e de alegria. É, também, pela matação que muitas desavenças desaparecem entre familiares, que aproveitam a circunstância para se reconciliarem.


Ruínas de uma furda, onde se vê a entrada para o local de recolha do suino.
Homens preparados, com os apetrechos necessários, para a matação e mulher com o alguidar, para apular o sangue, e a colher para o mexer. O cão observa.




segunda-feira, 11 de outubro de 2010

IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA



OS JESUÍTAS DO COLÉGIO DE SÃO FIEL NO CASAL DA SERRA



Depois da implantação da República, em 05 de Outubro de 1910, treze jesuítas do Colégio de São Fiel (Louriçal do Campo) abandonaram o edifício e refugiaram-se, no dia 7, em Casal da Serra, na chamada Casa Grande, que havia sido doada pelo seu último proprietário, padre Neves, à Misericórdia da Vila de São Vicente da Beira.
Por decreto de 08 de Outubro, os jesuítas foram expulsos de Portugal e, por decreto de 10 de Outubro, foi extinto o Colégio de São Fiel, que fora ocupado por uma força policial no dia 09.
Os treze jesuítas, auxiliados por pessoas do Casal da Serra, como Mariana Mendes, mulher dada às coisas da Igreja, esconderam-se numa loja da Casa Grande, sob a sala da laranjeira. A porta da loja foi tapada com molhos de mato sobre uma estrumeira improvisada. A comida era levada aos jesuítas por um alçapão, que ainda hoje existe, próximo da entrada sul para aquela sala, descendo por uma escada de varas de castanho fixada em duas covas no piso térreo da loja e apoiada num barrote junto do alçapão.
Depois de alguns dias, pela noite, gentes do Casal conduziram os jesuítas para a Lapa Escura, nas proximidades do Castelo Velho, até seguirem para Espanha levados por contrabandistas contratados para o efeito. Mariana Mendes, com alguns homens, mulheres e crianças do Casal, levavam comida aos fugitivos jesuítas, para a Lapa Escura.
Algumas mulheres do Casal da Serra iam à Espanha visitar os jesuítas que ficaram próximo da fronteira. Os jesuítas enviavam cartões de agradecimento.
Nos anos 30, Mariana Mendes recebeu uma foto de um jesuíta, que deixara crescer bigode e barbicha para disfarce, foto que, em 1940, se encontrava numa mesinha em casa daquela mulher do Casal.
Quando a família Mendes comprou, em 1911, em hasta pública a dita Casa Grande, que fora confiscada à Misericórdia pela República, foi encontrado um tinteiro e uma caneta de marfim, com aparo metálico, que os jesuítas haviam deixado sobre uma trave que sustentava o soalho da sala.
Fontes:
ROSA, J. Mendes - Colégio de S. Fiel - Ecos da Memória, Grupo de Arqueologia e Arte Centro, 2004.
Depoimentos de Mariana Mendes, José Mendes Júnior, Carolina da Cunha Mendes e Albano Mendes.


Mensurações antropométricas a um jesuíta do Colégio de São Fiel preso em Caxias.